Do desemprego agrário na Colômbia ao movimento “Passe Livre” no Brasil, do jornalismo digital e da luta mapuche pela terra às rádios comunitárias em rede da Bolívia, passando pelo “Yo soy 132” do México ou pela revolução dos pinguins do Chile, a tecnopolítica inaugura na região, na última década, um tempo novo que requer formular com certa urgência uma agenda de trabalho em comum entre movimentos sociais e academia para conectar e definir um projeto de construção coletiva que transcenda os marcos e as normas estabelecidas pela Comunicação como Domínio. Esta vontade transformadora de articulação de um programa de trabalho ou plataforma em comum não pode, como é lógico, partir do zero. É necessário lembrar o processo de inovação social vivido na América Latina ao longo das décadas de 1960 e 1970. Ainda hoje, entre culturas e tradições diversas que conformam o amplo setor comunitário da comunicação, numerosos agentes e atores coletivos continuam sustentando a ideia revolucionária da comunicação participativa reivindicando a práxis com eles a partir da economia moral da multidão e da rica e diversa experiência das culturas populares.
Das frentes culturais e das lutas pela democracia informativa liderada pela Comunicação Comunitária como campo de produção autônoma de articulação de vozes, como abertura contra-hegemônica para a mudança social, da resistência à crítica antagonista, o trabalho de organizações pioneiras como ALER, ALAI ou SIGNIS, entre muitas outras, veio contribuindo para o desenvolvimento de processos de produção e apropriação tecnológica baseado na organização, na unidade, no empoderamento grupal e coletivo que hoje devem ser levados em consideração para uma plataforma e agenda comum na América Latina.
Porém, na era da, denominada por Castells, “Autocomunicação de Massas”, parece lógico revisitar criticamente, até as suas últimas consequências, as novas experiências de tecnopolítica que são observadas na região, em um exercício de reflexão dialética, recursiva e generativa do campo, para recompor as posições de observação, definir mudanças de objeto e projetar novos usos e estratégias de redes diante da guerra informática e da constante intervenção que observamos em iniciativas da USAID aplicadas em países como Cuba ou Brasil. Nisto, arriscamos o futuro, e em nossos países periféricos a própria possibilidade de desenvolvimento autônomo.
Seria conveniente ressaltar sobremodo este fato, porque tememos que o chamado terceiro setor não seja totalmente consciente desta situação contraditória. Nem sempre foi assim na tradição latino-americana. Desde “Para ler o Pato Donald”, o pensamento crítico em comunicação procurou desconstruir a todo o momento o processo neocolonialista das indústrias culturais e da teoria funcionalista ou etnocêntrica ocidental, hibridando, relendo, escriturando de novo a história e o pensamento desde a sua topologia e mundos de vida concretos.
Sabemos que as tecnologias da informação e comunicação (TICs) são dispositivos de expressão da ação coletiva que surgem como resultado da inovação, ao mesmo tempo em que articulam para os movimentos sociais, do ponto de vista da mediação social, novas condições de disputa da hegemonia na luta pelo código. Daí a adequação de uma abordagem sociocultural das mediações, aberturas e modelos de hibridação do espaço público que têm lugar nas contraditórias dinâmicas de articulação da cultura cibernética contemporânea.
De acordo com a Carta sobre Direitos na Internet da Associação para o Progresso das Comunicações (APC), “o acesso à internet foi incrementado apesar da constante exclusão de comunidades marginais e de milhares de pessoas em países em vias de desenvolvimento. Ao mesmo tempo, está cada vez mais sujeita à comercialização, ao poder e ao controle corporativos. As novas tecnologias da informação e comunicação (TIC), incluída a internet, são parte do processo de globalização — um processo que é realizado em termos desiguais e que costuma exacerbar as desigualdades sociais e econômicas entre países e dentro dos mesmos. Ao mesmo tempo, a internet e as tecnologias relacionadas podem se converter em ferramentas para a resistência, a mobilização social e o desenvolvimento quando estão nas mãos de indivíduos e organizações que trabalham pela liberdade e a justiça” (APC, 2002).
Novos desafios
Neste novo marco de intervenção, não podemos esquecer que emerge um novo sujeito ou actor-red. “Em particular, a transformação da subjetividade dos processos de identidade pelo deslocamento dos referentes culturais, corporais, espaço-temporais, geográficos e políticos, em uma ágora eletrônica, de despersonalização para alguns, de exacerbação do eu, ou de uma subjetividade compartilhada para outros, é um assunto que requer a nossa atenção. O cruzamento de normativas que opera na rede está configurando um novo espaço para a construção do outro e em consequência para pensar a cidadania” (Rueda, 2006: 29).
A transformação dos vínculos sociais no ciberespaço antecipa, enfim, novas formas de cidadania. Por isso, os movimentos sociais, o voluntariado e as ONGs devem assumir a centralidade da tecnopolítica e definir estratégias em comum nas redes eletrônicas e telecentros, na medida em que toda máquina “é uma concatenação não só de tecnologia e saber, mas também de órgãos sociais, chegando ao extremo de exercer uma coordenação dos trabalhadores e das trabalhadoras individuais” (Raunig, 2008: 28). A visão matricial em rede implica, nesta linha, maior flexibilidade, interconexão, horizontalidade e proximidade. Mais comunicação e menos informação, de acordo com o paradigma ou enfoque da mediação.
A questão, então, é ver se as redes digitais nos permitem articular espaços socialmente abertos, inovadores e autônomos, se contribuem para estabelecer regras e procedimentos, contra poderes e espaços de interlocução e empoderamento ou, pelo contrário, replicam lógicas de domínio tradicionais tal e como se observou recentemente na Bolívia. Por isso, talvez devamos voltar a transitar o deslocamento do tecnoinstrumental para o sociopolítico, aprendendo de novo a politizar criticamente a geração social da comunicação e da cultura em uma época de crescente separação e mercantilização do universo simbólico pelas lógicas de mercificação da inovação tecnológica e social.
Caso não seja feita, como vem apresentando Mattelart, uma crítica ao controle cibernético, os processos de mudança que a América Latina vive correm o perigo de serem presas da jaula digital e das estratégias de domínio do que no passado se denominara cultura tec notrônica. Confiamos na inteligência criativa e emancipadora do tecido social. É hora de trazer estas questões para o centro de uma agenda comum. Como e a partir de onde fazê-lo é uma questão a ser definida no território e a partir do concreto. Urbi et Orbi.
– Francisco Sierra Caballero é catedrático de Teoria da Comunicação. Diretor do Grupo Interdisciplinar de Estudos em Comunicação, Política e Mudança Social (SEJ-456. Plano Andaluz de Pesquisa). www.franciscosierracaballero.
Artigo publicado na edição de junho 2016 da ediçao em portugês da revista América Latina en Movimiento: “La comunicación en disputa” http://www.alainet.org/pt/revistas/513-514 (ALAI – SENGE-RJ)
Referências
APC (2002). Carta de APC sobre derechos en Internet: Internet por el desarrollo y la justicia social. http://www.alainet.org/es/active/11844 (anexo II)
LAGO, Silvia (Comp.) (2012). Ciberespacio y resistencias. Exploración en la cultura digital. Buenos Aires: Hekht Libros.
RAUNIG, Gerald (2008). Mil máquinas. Breve filosofía de la máquina como movimiento social. Madrid: Traficantes de Sueños.
RUEDA, Rocío (2006): “Apropiación social de las tecnologías de la información: ciberciudadanías emergentes” en Tecnología Educativa, ILCE, número 4, México.
SIERRA, Francisco y David Montero (Eds.) (2015). Videoactivismo y movimientos sociales. Barcelona: Gedisa.
Artículo publicado en la Revista América Latina en Movimiento: A comunicação em disputa 04/07/2016 |